segunda-feira, 22 de abril de 2013

O outro - Rubem Fonseca

Pessoal do 1º ano Médio do 16 de Julho, peguem o material que falei na sala de aula.


O Outro - Rubem Fonseca

          Eu chegava todo dia no meu escritório às oito e trinta da manhã. O carro parava na porta do prédio e eu saltava, andava dez ou quinze passos, e entrava.
Como todo executivo, eu passava as manhãs dando telefone­mas, lendo memorandos, ditando cartas à minha secretária e me exasperando com problemas. Quando chegava a hora do almoço, eu havia trabalhado duramente. Mas sempre tinha a impressão de que não havia feito nada de útil.
Almoçava em uma hora, às vezes uma hora e meia, num dos restaurantes das proximidades, e voltava para o escritório. Havia dias em que eu falava mais de cinquenta vezes ao telefone. As cartas eram tantas que a minha secretária, ou um dos assistentes, assinava por mim. E, sempre, no fim do dia, eu tinha a impressão de que não havia feito tudo o que precisava ser feito. Corria contra o tempo. Quando havia um feriado, no meio da semana, eu me irritava, pois era menos tempo que eu tinha. Levava diariamente trabalho para casa, em casa podia produzir melhor, o telefone não me chamava tanto.
Um dia comecei a sentir uma forte taquicardia. Aliás, nesse mesmo dia, ao chegar pela manhã ao escritório surgiu ao meu lado, na calçada, um sujeito que me acompanhou até a porta dizendo "doutor, doutor, será que o senhor podia me ajudar?". Dei uns trocados a ele e entrei. Pouco de­pois, quando estava falando ao telefone para São Paulo, o meu coração disparou. Durante alguns minutos ele bateu num ritmo fortíssimo, me deixando extenuado. Tive que deitar no sofá, até passar. Eu estava tonto, suava muito, quase desmaiei.
Nessa mesma tarde fui ao cardiologista. Ele me fez um exame minucioso, inclusive um eletrocardiograma de esforço, e, no final, disse que eu precisava diminuir de peso e mudar de vida. Achei graça. Então, ele recomendou que eu parasse de trabalhar por algum tempo, mas eu disse que isso, também, era impossível. Afinal, me prescreveu um regime alimentar e mandou que eu caminhasse pelo menos duas vezes por dia.
No dia seguinte, na hora do almoço, quando fui dar a caminhada receitada pelo médico, o mesmo sujeito da véspera me fez parar pedindo dinheiro. Era um homem branco, forte, de cabelos castanhos compridos. Dei a ele algum dinheiro e prossegui.
O médico havia dito, com franqueza, que se eu não tomasse cuidado poderia a qualquer momento ter um enfarte. Tomei dois tranquilizantes, naquele dia, mas isso não foi suficiente para me deixar totalmente livre da tensão. À noite não levei trabalho para casa. Mas o tempo não passava. Tentei ler um livro, mas a minha atenção estava em outra parte, no escritório. Liguei a televisão mas não consegui aguentar mais de dez minutos. Voltei da minha caminhada, depois do jantar, e fiquei impaciente sentado numa poltrona, lendo os jornais, irritado.
Na hora do almoço o mesmo sujeito emparelhou comigo, pedindo dinheiro. "Mas todo dia?", perguntei. "Doutor", ele respondeu, "minha mãe está morrendo, precisando de remédio, não conheço ninguém bom no mundo, só o senhor." Dei a ele cem cruzeiros.
Durante alguns dias o sujeito sumiu. Um dia, na hora do almoço, eu estava caminhando quando ele apareceu subitamente ao meu lado. "Doutor, minha mãe morreu”. Sem parar, e apressando o passo, respondi, "sinto muito". Ele alargou as suas passadas, mantendo-se ao meu lado, e disse "morreu". Tentei me desvencilhar dele e comecei a andar rapidamente, quase correndo. Mas ele correu atrás de mim, dizendo "morreu, morreu, morreu", estendendo os dois braços contraídos numa expectativa de esforço, como se fossem colocar o caixão da mãe sobre as palmas de suas mãos. Afinal, parei ofegante e perguntei, "quanto é?". Por cinco mil cruzeiros ele enterrava a mãe. Não sei por que, tirei um talão de cheques do bolso e fiz ali, em pé na rua, um cheque naquela quantia. Minhas mãos tremiam. "Agora chega!”, eu disse.
No dia seguinte eu não saí para dar a minha volta. Almocei no escritório. Foi um dia terrível, em que tudo dava errado: papéis não foram encontrados nos arquivos, uma importante concorrência foi perdida por diferença mínima; um erro no planejamento financeiro exigiu que novos e complexos cálculos orçamentários tivessem que ser elaborados em regime de urgência. À noite, mesmo com os tranqüilizantes, mal consegui dormir.
De manhã fui para o escritório e, de certa forma, as coisas melhoraram um pouco. Ao meio-dia saí para dar a minha volta.
 Vi que o sujeito que me pedia dinheiro estava em pé, meio escondido na esquina, me espreitando, esperando eu passar. Dei a volta e caminhei em sentido contrario. Pouco depois ouvi o barulho de saltos de sapatos batendo na calçada como se alguém estivesse correndo atrás de mim. Apressei o passo, sentindo um aperto no coração, era como se eu estivesse sendo perseguido por alguém, um sentimento infantil de medo contra o qual tentei lutar, mas neste instante ele chegou ao meu lado, dizendo, "doutor, doutor". Sem parar, eu perguntei, "agora o quê?". Mantendo-se ao meu lado, ele disse, "doutor, o senhor tem que me ajudar, não tenho ninguém no mundo". Respondi com toda autoridade que pude colocar na voz, "arranje um emprego". Ele disse, "eu não sei fazer nada, o senhor tem que me ajudar". Corríamos pela rua. Eu tinha a impressão de que as pessoas nos observavam com estranheza. "Não tenho que ajudá-lo coisa alguma", respondi. "Tem sim, senão o senhor não sabe o que pode acontecer", e ele me segurou pelo braço e me olhou, e pela primeira vez vi bem como era o seu rosto, cínico e vingativo. Meu coração batia, de nervoso e cansaço. "É a última vez", eu disse, parando e dando dinheiro para ele, não sei quanto.
          Mas não foi a última vez. Todos os dias ele surgia, repentina­mente, súplice e ameaçador, caminhando ao meu lado, arruinando a minha saúde, dizendo é a última vez doutor, mas nunca era. Minha pressão subiu ainda mais, meu coração explodia só de pensar nele. Eu não queria mais ver aquele sujeito, que culpa eu tinha de ele ser pobre?
          Resolvi parar de trabalhar uns tempos. Falei com os meus colegas de diretoria, que concordaram com a minha ausência por dois meses.
A primeira semana foi difícil. Não é simples parar de repente de trabalhar. Eu me senti perdido, sem saber o que fazer. Mas aos poucos fui me acostumando. Meu apetite aumentou. Passei a dormir melhor e a fumar menos. Via televisão, lia, dormia depois do almoço e andava o dobro do que andava antes, sentindo-me ótimo. Eu estava me tornando um homem tranquilo e pensando seriamente em mudar de vida, parar de trabalhar tanto.
          Um dia saí para o meu passeio habitual quando ele, o pedinte, surgiu inesperadamente. Inferno, como foi que ele descobriu o meu endereço? "Doutor, não me abandone!" Sua voz era de mágoa e ressentimento. "Só tenho o senhor no mundo, não faça isso de novo comigo, estou precisando de um dinheiro, esta é a última vez, eu juro!" — e ele encostou o seu corpo bem junto ao meu, enquanto caminhávamos, e eu podia sentir o seu hálito azedo e podre de faminto. Ele era mais alto do que eu, forte e ameaçador.
     Fui na direção da minha casa, ele me acompanhando, o rosto fixo virado para o meu, me vigiando curioso, desconfiado, implacável, até que chegamos na minha casa. Eu disse, "espere aqui".
     Fechei a porta, fui ao meu quarto. Voltei, abri a porta e ele ao me ver disse "não faça isso, doutor, só tenho o senhor no mundo". Não acabou de falar ou se falou eu não ouvi, com o barulho do tiro. Ele caiu no chão, então vi que era um menino franzino, de espinhas no rosto e de uma palidez tão grande que nem mesmo o sangue, que foi cobrindo a sua face, conseguia esconder.

Texto publicado no livro "Contos Reunidos", Companhia das Letras — São Paulo, 1994, e extraído de "Contos para um Natal brasileiro", Relume-Dumará/IBASE - Rio de Janeiro, 1996, pág. 37.

segunda-feira, 11 de março de 2013

TRABALHANDO COM CONTOS


Para recordarem as nossas aulas...
Quem faltou a aula, é só tirar copia do material

Conto de Moacyr Scliar trabalhado nas aulas de interpretação textual do 9º ano e do 1º ano do ensino médio, bem como material introdutório para o estudo do gênero textual CONTO  das turmas do 7º ano A e B, 8º ano do Colégio 16 de Julho.

A VACA
Numa noite de temporal, um navio naufragou ao largo da costa africana. Partiu-se ao meio, e foi ao fundo em menos de um minuto. Passageiros e tripulantes pereceram instantaneamente. Salvou-se apenas um marinheiro, projetado à distância no momento do desastre. Meio afogado, pois não era bom nadador, o marinheiro orava e despedia-se da vida, quando viu a seu lado, nadando com presteza e vigor, a vaca Carola.
A vaca Carola tinha sido embarcada em Amsterdam.
Excelente ventre, fora destinada a uma fazenda na América do Sul.
Agarrado ao chifre da vaca, o marinheiro deixou-se conduzir; e assim, ao romper do dia, chegaram a uma ilhota arenosa, onde a vaca depositou o infeliz rapaz, lambendo-lhe o rosto até que ele acordasse.
Notando que estava numa ilha deserta, o marinheiro rompeu em prantos: ''Ai de mim! Esta ilha está fora de todas as rotas! Nunca mais verei um ser humano!'' chorou muito, prostrado na areia, enquanto a vaca Carola fitava-o com seus grandes olhos castanhos. Finalmente, o jovem enxugou as lágrimas e pôs-se de pé.
Olhou ao redor: nada havia na ilha, a não ser rochas pontiagudas e umas poucas árvores raquíticas. Sentiu fome; chamou a vaca: ''Vem Carola '' ordenhou-a e bebeu leite bom, quente e espumante. Sentiu- se melhor; sentou-se e ficou a olhar o oceano, ''Ai de mim''- gemia de vez em quando, mas já sem muita convicção; o leite fizera-lhe bem. Naquela noite dormiu abraçado à vaca. Foi um sono bom, cheio de sonhos reconfortantes; e quando acordou - ali estava o ubre a lhe oferecer o leite abundante. Os dias foram passando e o rapaz se apegava cada vez mais com a vaca. ''Vem Carola!'' ela vinha, obediente.
Ele cortava um pedaço de carne tenra - gostava muito de língua - e devorava-o cru, ainda quente, o sangue escorrendo pelo queixo. A vaca nem mugia. Lambia as feridas, apenas. O marinheiro tinha sempre o cuidado de não ferir órgãos vitais; se tirava um pulmão, deixava o outro; comeu o baço, mas não o coração. Com pedaços de couro o marinheiro fez roupas e sapatos e um toldo para abrigá-lo do sol e da chuva. Amputou a cauda de Carola para espantar as moscas.
Quando a carne começou a escassear, atrelou a vaca a um tosco arado, feito de galhos, e lavrou um pedaço de terra mais fértil, entre as árvores. Usou o excremento do animal como adubo. Como fosse escasso, triturou alguns ossos, para usá-los como fertilizante. Semeou alguns grãos de milho, que tinham ficado nas cáries da dentadura de Carola. Logo, as plantinhas começaram a brotar, e o rapaz sentiu renascer a esperança. Na festa de São João, ele comeu canjica.  A primavera chegou. Durante a noite uma brisa suave soprava de lugares remotos, trazendo sutis aromas.
Olhando as estrelas, o marinheiro suspirava. Uma noite, arrancou um dos olhos de Carola, misturou-o com água do mar e engoliu esta leve massa. Teve visões voluptuosas, como nenhum mortal jamais experimentou... Transportado de desejo aproximou-se da vaca... E ainda dessa vez, foi Carola quem lhe valeu.
Muito tempo se passou, e o marinheiro avistou um navio no horizonte. Doido de alegria, berrou com todas as forças, mas não lhe respondiam: o navio estava muito longe. O marinheiro arrancou um dos chifres de Carola e improvisou uma corneta. O som poderoso atroou os ares, mas ainda assim não obteve resposta.
O rapaz desesperava-se: a noite caia e o navio afastava-se da ilha. Finalmente, o rapaz deitou Carola no chão e jogou um fósforo aceso no ventre ulcerado de Carola, onde um pouco de gordura ainda aparecia.
Rapidamente a vaca incendiou-se. Em meio a fumaça negra, fitava o marinheiro com seu único olho bom. O rapaz estremeceu; julgou ter visto uma lágrima. Mas foi só impressão. O clarão chamou a atenção do comandante do navio; uma lancha veio recolher o marinheiro. Iam partir, aproveitando a maré, quando o rapaz gritou: ''Um momento!''; voltou para a ilha e apanhou do montículo de cinzas fumegantes, um punhado que guardou dentro do gibão de couro. ''Adeus Carola '' - murmurou. Os tripulantes da lancha se entreolharam. ''É do sol'' - disse um. O marinheiro chegou ao seu país natal. Abandonou a vida no mar e tornou-se um rico e respeitado granjeiro, dono de um tambo com centenas de vacas. Mas apesar disto, tornou-se infeliz e solitário, tendo pesadelos horríveis todas as noites, até os quarenta anos. Chegando a esta cidade, viajou para Europa de navio.
Uma noite, insone, deixou o luxuoso camarote e subiu ao tombadilho iluminado pelo luar. Acendeu um cigarro apoiou-se na amurada e ficou olhando o mar. De repente, estirou o pescoço, ansioso. Avistara uma ilhota no horizonte.
- Alô - disse alguém, perto dele.
Voltou-se. Era uma bela loira, de olhos castanhos e seios opulentos.
- Meu nome é Carola - disse ela.