segunda-feira, 11 de março de 2013

TRABALHANDO COM CONTOS


Para recordarem as nossas aulas...
Quem faltou a aula, é só tirar copia do material

Conto de Moacyr Scliar trabalhado nas aulas de interpretação textual do 9º ano e do 1º ano do ensino médio, bem como material introdutório para o estudo do gênero textual CONTO  das turmas do 7º ano A e B, 8º ano do Colégio 16 de Julho.

A VACA
Numa noite de temporal, um navio naufragou ao largo da costa africana. Partiu-se ao meio, e foi ao fundo em menos de um minuto. Passageiros e tripulantes pereceram instantaneamente. Salvou-se apenas um marinheiro, projetado à distância no momento do desastre. Meio afogado, pois não era bom nadador, o marinheiro orava e despedia-se da vida, quando viu a seu lado, nadando com presteza e vigor, a vaca Carola.
A vaca Carola tinha sido embarcada em Amsterdam.
Excelente ventre, fora destinada a uma fazenda na América do Sul.
Agarrado ao chifre da vaca, o marinheiro deixou-se conduzir; e assim, ao romper do dia, chegaram a uma ilhota arenosa, onde a vaca depositou o infeliz rapaz, lambendo-lhe o rosto até que ele acordasse.
Notando que estava numa ilha deserta, o marinheiro rompeu em prantos: ''Ai de mim! Esta ilha está fora de todas as rotas! Nunca mais verei um ser humano!'' chorou muito, prostrado na areia, enquanto a vaca Carola fitava-o com seus grandes olhos castanhos. Finalmente, o jovem enxugou as lágrimas e pôs-se de pé.
Olhou ao redor: nada havia na ilha, a não ser rochas pontiagudas e umas poucas árvores raquíticas. Sentiu fome; chamou a vaca: ''Vem Carola '' ordenhou-a e bebeu leite bom, quente e espumante. Sentiu- se melhor; sentou-se e ficou a olhar o oceano, ''Ai de mim''- gemia de vez em quando, mas já sem muita convicção; o leite fizera-lhe bem. Naquela noite dormiu abraçado à vaca. Foi um sono bom, cheio de sonhos reconfortantes; e quando acordou - ali estava o ubre a lhe oferecer o leite abundante. Os dias foram passando e o rapaz se apegava cada vez mais com a vaca. ''Vem Carola!'' ela vinha, obediente.
Ele cortava um pedaço de carne tenra - gostava muito de língua - e devorava-o cru, ainda quente, o sangue escorrendo pelo queixo. A vaca nem mugia. Lambia as feridas, apenas. O marinheiro tinha sempre o cuidado de não ferir órgãos vitais; se tirava um pulmão, deixava o outro; comeu o baço, mas não o coração. Com pedaços de couro o marinheiro fez roupas e sapatos e um toldo para abrigá-lo do sol e da chuva. Amputou a cauda de Carola para espantar as moscas.
Quando a carne começou a escassear, atrelou a vaca a um tosco arado, feito de galhos, e lavrou um pedaço de terra mais fértil, entre as árvores. Usou o excremento do animal como adubo. Como fosse escasso, triturou alguns ossos, para usá-los como fertilizante. Semeou alguns grãos de milho, que tinham ficado nas cáries da dentadura de Carola. Logo, as plantinhas começaram a brotar, e o rapaz sentiu renascer a esperança. Na festa de São João, ele comeu canjica.  A primavera chegou. Durante a noite uma brisa suave soprava de lugares remotos, trazendo sutis aromas.
Olhando as estrelas, o marinheiro suspirava. Uma noite, arrancou um dos olhos de Carola, misturou-o com água do mar e engoliu esta leve massa. Teve visões voluptuosas, como nenhum mortal jamais experimentou... Transportado de desejo aproximou-se da vaca... E ainda dessa vez, foi Carola quem lhe valeu.
Muito tempo se passou, e o marinheiro avistou um navio no horizonte. Doido de alegria, berrou com todas as forças, mas não lhe respondiam: o navio estava muito longe. O marinheiro arrancou um dos chifres de Carola e improvisou uma corneta. O som poderoso atroou os ares, mas ainda assim não obteve resposta.
O rapaz desesperava-se: a noite caia e o navio afastava-se da ilha. Finalmente, o rapaz deitou Carola no chão e jogou um fósforo aceso no ventre ulcerado de Carola, onde um pouco de gordura ainda aparecia.
Rapidamente a vaca incendiou-se. Em meio a fumaça negra, fitava o marinheiro com seu único olho bom. O rapaz estremeceu; julgou ter visto uma lágrima. Mas foi só impressão. O clarão chamou a atenção do comandante do navio; uma lancha veio recolher o marinheiro. Iam partir, aproveitando a maré, quando o rapaz gritou: ''Um momento!''; voltou para a ilha e apanhou do montículo de cinzas fumegantes, um punhado que guardou dentro do gibão de couro. ''Adeus Carola '' - murmurou. Os tripulantes da lancha se entreolharam. ''É do sol'' - disse um. O marinheiro chegou ao seu país natal. Abandonou a vida no mar e tornou-se um rico e respeitado granjeiro, dono de um tambo com centenas de vacas. Mas apesar disto, tornou-se infeliz e solitário, tendo pesadelos horríveis todas as noites, até os quarenta anos. Chegando a esta cidade, viajou para Europa de navio.
Uma noite, insone, deixou o luxuoso camarote e subiu ao tombadilho iluminado pelo luar. Acendeu um cigarro apoiou-se na amurada e ficou olhando o mar. De repente, estirou o pescoço, ansioso. Avistara uma ilhota no horizonte.
- Alô - disse alguém, perto dele.
Voltou-se. Era uma bela loira, de olhos castanhos e seios opulentos.
- Meu nome é Carola - disse ela.